Correr para apanhar o autocarro
É fugir à morte na troca dos pés
Pouca sorte
Cara no chão
E o passado passa a norte
- Eu avisei - reclama a voz paterna
Também caí ao balançar em tua perna
A pressa é inimiga da razão
Não dá vazão ao sangue no qual tropeça
Ainda não fui mas sei que vou
Já flui na vale a hora que chegou
O meu caminho é trilhado a léguas
Se o sol se põe só me oriento às cegas
No escuro o espanto de ser uno e só
E o rubro encanto reduzir a pó
Secado o santo noturno suor
Depois de tanto profanar com rigor
Fazer a mala de amor e glória
E entregá-la ao baú da memória
A quantas ando que já não te vejo
tão mansas as forças que tenho no beijo
poejo, eu queixo-me e a vida acontece
Parece que nasço, desfaço o abismo com cores de algodão Cismo que o fracasso é crasso sem erro sujeito a perdão
E o tempo perdido é tão mais querido
E o tempo perdido é pão
E o tempo perdido é tão mais querido
Se amor é razão
O que era ontem razão de euforia
Ao acordar alimenta o marasmo
Mudança na balança
Transforma o excesso em falta de alegria
E emagrece o entusiasmo
As cores já não têm o mesmo brilho
E a palidez tomou conta do sol
Infiltrados filtros
A lâmpada moeu o seu casquilho
E as ondas apagaram o farol
Saltar, cair
Três vezes bipolar
Do êxtase sair
Para se atirar ao mar
O dono da prisão é o recluso
Que em liberdade esqueceu a chave
Calado cadeado
Culpando-se pelo seu próprio abuso
Do ático desceu até à cave
O rugir do leão já dissipou
E os pássaros não trinam mais na aurora
Som sem tom
Se o maníaco tudo cantou
A depressão é a banda sonora
Saltar, cair
Três vezes bipolar
Do êxtase sair
Para se atirar ao mar
Cajó perdeu o emprego, perdeu a razão
perdeu o sossego, e o salário
Vinte anos escriturário a cumprir o seu horário
E tu? Sabes o que é?
Cinco vezes por semana às sete já estar de pé
Pr’aquecer o teu café que te vai manter desperto
e esperto pr'aturares o teu patrão e seu matinal sermão
Cajó anda cá já
Deslocalizámos o call center para o Brasil
e na China é que é baril produzir
Se não me falha a memória, são dois cêntimos à hora
e o sindicato está fora da lei
e eu sou o rei da lei
Eu sou o rei da Leila, esposa de Cajó
6 euros à hora p'ra limpar o pó
sanitas, cozinhas
cozer pão de ló, usar lixívia sem dó
ler Maria nas horas vagas, preparar umas empadas
tirar o pato do forno e comer pizza Buongiorno
com a criançada, comprada
no hipermercado onde trabalhou no passado
Cajó anda cá já
Os meus impostos não os vês
foram descontados ao revés
Saltaram barreiras, cruzaram fronteiras
Quem vai resistir à tentação
desta minha nova promoção
O povo come da minha mão
Aspartame, corantes e sabão
O ministro come do meu prato
Sou eu quem paga a louça e o fato
Sou eu quem paga ao Cajó
Eu não sou mais do campo, acuso minha origem
Recuso enxada e pão, fruta madura e fisga
Recluso da cidade e da doce vertigem
Ter tudo a toda a hora, adormecer na bisga
Que horror, unhas com terra, desleixo no trato
Beijocar os parentes, comer bom e barato
Ser filho do fulano e fulana de tal
Recordarem quem me pariu no hospital
Agora sou da cidade e dos seus miradouros
Vitrines luminosas e avenidas largas
Sibilando palavras-chave citadinas
Recalcando saloias memórias amargas
Na noite glamorosa até horas decentes
Bebendo um cocktail, palrando entredentes
Ou no Cais do Sodré, mão apontada à saia
Creio que sou superior à festa da Atalaia
Mas às vezes tropeço no antigo sotaque
Sou gemada sem gema e me dá um baque
Sou couve, não alface, e penso nos avós
Na canja de galinha e na velha filhós
Se eu brinquei entre as canas, nelas fiz cabanas
Se a cabra e a carraça entraram no meu conto
Quem quero eu enganar, memória por quem chamas
Se entro ao serviço engravatado às oito em ponto
Dá ao dente, põe-te a milhas
Firmemente aperta as quilhas
Dor, sofrimento e lamento
Fazem de ti um jumento
Dá ao dente alimenta o que te enriquece a mente
historietas de novela põe-te a tola demente
Se a bitola é falsidade pr’amansar o ego carente,
põe na cartola tua verdade pois tudo falas, nada sentes
Mas se o amor faz parte da tua passada
vais trinar e vais voar com o resto da passarada
Não há pedaço de céu que escape à tua mirada
olhos sem ramelas vêm tudo onde não há nada
Põe-te a milhas dessa raiva que por dentro te consome
abandona-a num baldio e deixa-a morrer de fome
de frio, de sede e doença grave rara e sem nome
que as entranhas putrefactas, vis e fedorentas come
Reanima o morto com um tiro de perdão,
mostra ao vivo como bate no esterno o coração,
que a interna luta é um caminho p’rá resolução
mas que nem todas as conclusões vêm da razão.
Firmemente aperta as quilhas p'ra o balanço não falhar
finca os olhos nessas ilhas onde o teu ser vai medrar
com o sol e com a chuva, com o vento e com o mar
e quando a pele estiver curtida há conquilhas para o jantar
É conta certa que o previsto não vai ser
e que a expectativa alta inverte o acontecer
No salgado da viagem inventa o doce prazer
se te encontrares com o abismo diz que é cedo pra morrer
Dor, sofrimento e lamento são três faces da moeda
um retrai, o outro rasga e o último embebeda
O primeiro não se evita, o segundo a boca azeda
e o terceiro pra piorar a situação é tiro e queda
Mas tudo muda quando a mona se organiza
e a testa em vez de fender enrugada fica lisa
Na inspiração profunda a labareda vira cinza
e não há questão que não sucumba à mais leve brisa
Fazem de ti um jumento sempre que desesperas
e tropeças nas vivências mais cruéis e mais severas
A tortura, a prisão, os vírus ou bactérias
ou o que te faça acreditar que são falsas tuas quimeras
Não quero cair na falácia e mentir afirmando:
“para ser feliz basta decidir”
Cada um é o caso que o acaso permitir
e se a fome aperta vais-me ouvir ao longe a ganir.
Farda aprumada, bota de estrada, tola rapada
A pistola não é negada, quem carrega que a dispare
Não! Pare para pensar e questionar a ordem dada
Montamos cercas, portas abertas para atirar
Somamos perdas, contas incertas para pagar
Semeamos guerras, mortes que tardam em sarar
E atrás do escudo quem se esconde?
A massa bruta em pé, a ordem feita fé
O inverso da ralé, a estátua e a sé
Ou eu que não tranquei a minha porta?
Aborta a missão que a proteção é vã
Depois dela vem sempre a violência irmã
Algema quem te ordena matar teu irmão
Ou que cortes as mãos a quem só roubou pão
Difícil é disparar matando a culpa ao mesmo tempo
Cariño, tu eres mi aliño, mi propio sabor
Tres flores y tremendo polen para los amores
No me das mala espina con tu cintura fina
Aunque te miren todos los borrachos
cuando entramos en la cantina
Hermosa, eres brillante diosa, santa pecadora
Pincel, colorido esbozo en mi alma de papel
Trabajado granito, en tu magma derrito
Pero si el cuarzo atrasa tu reloj
me siento viejo megalito
Cuando no te conocía
yo ardía en mil fuegos
Siento olor a tontería
y me quemo con tus juegos
Sublime, te pido ahora, dime a cuantas voces canto
Deserto de cualquier guerra fría y mi calor te oferto
Si te aburro, lamento cargarte el pensamiento
Estaba picando piedra en tu corazón
y se me fue el tiempo
Após fechares os olhos
e apagares a última vela
a terra aprontará das dela
Por baixo das flores aos molhos
ao corpo morto de cansaço
as larvas darão seu abraço
Na senda de te tornares húmus
tua vista vai ficar vazia
e em pó os ossos da bacia
Ao beber a árvore teus sumos
serás de uma folha a mãe
que cai no outono que vem
Se voas para longe é certo
flutuarás num desses rios
que nascem lá nos picos frios
E com tanta água por perto
aprenderás logo a nadar
p'ra uma ave te bebericar
Tuas penas cairão do céu
em ondulação oscilante
nas mãos de um jovem amante
Adorno de um belo chapéu
verás como aquece o corpo
quando o amor ainda não está morto
Respeito quem creia num deus
mas meus sonhos são ateus
pois ainda ninguém voltou p'ra contar
ainda ninguém voltou p'ra cantar
ainda ninguém voltou p'ra contar
ainda ...
Pra quê agarrar o vento se a previsão é vendaval
Pra quê viver o tormento e aceitar o que é banal
Pra quê dormir ao relento se a lua cheia já passou
Pra quê dar ao sol sustento se a queimadura não sarou
Como os teus olhos há poucos
Como o nosso amor há muitos
São tantos que ficam loucos
Com tantas conversas, tão poucos assuntos
Pra quê ser a folha seca se a Primavera vem aí
Pra quê ser o ser que peca e não pecar ao pé de ti
Para quê lavrar a terra se erva daninha é bem mais forte
Para quê escalar a serra se no topo há sempre a morte
Musa clara da manhã
Companheira ao meio-dia
Peregrina pela noite dentro
Melodia em que adormecia
Há quem beba da água do rio
Quem da bomba carregue o pavio
Há quem suba a grandes alturas
Quem escute do mundo as aberturas
Há quem tenha o deserto ao dispôr
Quem viva num cubículo de amor
Há quem nunca viveu mais além
Há quem todos os dias fica aquém
Ser viajante é por dentro da casa viver
Ter na estante o livro do presente pra ler
Lugares onde não se vêem estrelas
Sítios onde só existem velas
Vilas em que o silêncio afunda
Aldeias em que a música abunda
Ilhas há pra navegar o dia
Montanhas com cheiro a maresia
Ondas só com bilhete de ida
E um grito para voltar à vida
Não sei se vou um dia encontrar
mais belo paraíso do que a areia sob o mar
e sobre ele o céu a lancear
o dia que chegou para brilhar
Não sei se vou um dia encontrar
mais belo paraíso do que a areia sob o mar
e sobre ele o céu a lancear
o dia que chegou para morrer
Com a noite que revolve e se revolta
e se redime espuma na pedra esverdeada
e esconde estrelas que nos mostra a madrugada
se a sorte nos trouxer a maré vaza
Não sei se vou um dia encontrar
mais belo paraíso do que a areia sob o mar
e sobre ele o céu a lancear
o dia que chegou para mostrar
Tentáculos e espinhos e cavalos marinhos
crustáceos, lapas e seres sem nome comum
Se eu tivesse cem vidas como estas arribas
mirava os grãos de areia um a um
Se eu tivesse mil vidas como estas arribas
beijava os grãos de areia um a um
Se do pai macho nasce o filho gay
Que esconde fundo o seu amor fora-da-lei
Da mãe caseira, sem eira nem beira nasce o vagabundo
Que como a poeira vagueia no mundo
O irmão explosivo talha o pensativo
Primo pobre envergonha a rica prima e seu perfume nobre
Tia descobre a avó na batotice
Tio encobre o caso com a Dona Alice
A sogra sobe os degraus da demência
O sogro joga o jogo da paciência
Ciência da família, cedência na quezília
Cedência na família, ciência da quezília
De parte a parte se odeiam as noras
Mas se necessário dão dois beijos sem demoras
E os maridos respectivos com seus gémeos umbigos
Fazem vista grossa e moucos os ouvidos
Surdinamente diz que o neto anda na droga
Diz até quem sabe que trocou a toga pelo ioga
O avô quer repor o rapaz na linha
A avó com pena faz-lhe canja de galinha
O bisavô e a bisavó já não existem
Pendurados na parede com o olhar insistem
E pouco a pouco as gerações se vão mutando
O tempo é rei, ordena o caos e altera o bando
Por cada um que a morte avança outro vai sair da pança
Pra chorar, amar e repartir a herança
Nisso as diferenças são eternas, cortam do futuro as pernas E os parentes viram homens das cavernas
Mas há sempre quem ponha água na fervura
E acalme os ânimos com jogo de cintura
Que a eternidade é muito tempo pra uma guerra
E todos querem paz na hora de descer à terra