Letras



LETRAS


AUTOCARRO


Correr para apanhar o autocarro

É fugir à morte na troca dos pés

Pouca sorte

Cara no chão

E o passado passa a norte


- Eu avisei - reclama a voz paterna

Também caí ao balançar em tua perna

A pressa é inimiga da razão


Não dá vazão ao sangue no qual tropeça



BAÚ DA MEMÓRIA


Ainda não fui mas sei que vou

Já flui na vale a hora que chegou


O meu caminho é trilhado a léguas

Se o sol se põe só me oriento às cegas


No escuro o espanto de ser uno e só

E o rubro encanto reduzir a pó


Secado o santo noturno suor

Depois de tanto profanar com rigor


Fazer a mala de amor e glória

E entregá-la ao baú da memória


 

BEIJO-POEJO


A quantas ando que já não te vejo

tão mansas as forças que tenho no beijo

poejo, eu queixo-me e a vida acontece


Parece que nasço, desfaço o abismo com cores de algodão Cismo que o fracasso é crasso sem erro sujeito a perdão


E o tempo perdido é tão mais querido

E o tempo perdido é pão

E o tempo perdido é tão mais querido

Se amor é razão



BIPOLAR


O que era ontem razão de euforia

Ao acordar alimenta o marasmo

Mudança na balança

Transforma o excesso em falta de alegria

E emagrece o entusiasmo


As cores já não têm o mesmo brilho

E a palidez tomou conta do sol

Infiltrados filtros

A lâmpada moeu o seu casquilho

E as ondas apagaram o farol


Saltar, cair

Três vezes bipolar

Do êxtase sair

Para se atirar ao mar


O dono da prisão é o recluso

Que em liberdade esqueceu a chave

Calado cadeado

Culpando-se pelo seu próprio abuso

Do ático desceu até à cave


O rugir do leão já dissipou

E os pássaros não trinam mais na aurora

Som sem tom

Se o maníaco tudo cantou

A depressão é a banda sonora


Saltar, cair

Três vezes bipolar

Do êxtase sair

Para se atirar ao mar




CAJÓ


Cajó perdeu o emprego, perdeu a razão

perdeu o sossego, e o salário

Vinte anos escriturário a cumprir o seu horário

E tu? Sabes o que é?

Cinco vezes por semana às sete já estar de pé

Pr’aquecer o teu café que te vai manter desperto

e esperto pr'aturares o teu patrão e seu matinal sermão


Cajó anda cá já


Deslocalizámos o call center para o Brasil

e na China é que é baril produzir

Se não me falha a memória, são dois cêntimos à hora

e o sindicato está fora da lei


e eu sou o rei da lei


Eu sou o rei da Leila, esposa de Cajó

6 euros à hora p'ra limpar o pó

sanitas, cozinhas

cozer pão de ló, usar lixívia sem dó

ler Maria nas horas vagas, preparar umas empadas

tirar o pato do forno e comer pizza Buongiorno

com a criançada, comprada

no hipermercado onde trabalhou no passado


Cajó anda cá já


Os meus impostos não os vês

foram descontados ao revés

Saltaram barreiras, cruzaram fronteiras

Quem vai resistir à tentação

desta minha nova promoção

O povo come da minha mão

Aspartame, corantes e sabão

O ministro come do meu prato

Sou eu quem paga a louça e o fato


Sou eu quem paga ao Cajó



CIDADE SALOIA


Eu não sou mais do campo, acuso minha origem

Recuso enxada e pão, fruta madura e fisga

Recluso da cidade e da doce vertigem

Ter tudo a toda a hora, adormecer na bisga


Que horror, unhas com terra, desleixo no trato

Beijocar os parentes, comer bom e barato

Ser filho do fulano e fulana de tal

Recordarem quem me pariu no hospital


Agora sou da cidade e dos seus miradouros

Vitrines luminosas e avenidas largas

Sibilando palavras-chave citadinas

Recalcando saloias memórias amargas


Na noite glamorosa até horas decentes

Bebendo um cocktail, palrando entredentes

Ou no Cais do Sodré, mão apontada à saia

Creio que sou superior à festa da Atalaia


Mas às vezes tropeço no antigo sotaque

Sou gemada sem gema e me dá um baque

Sou couve, não alface, e penso nos avós

Na canja de galinha e na velha filhós


Se eu brinquei entre as canas, nelas fiz cabanas

Se a cabra e a carraça entraram no meu conto

Quem quero eu enganar, memória por quem chamas

Se entro ao serviço engravatado às oito em ponto




DÁ AO DENTE


Dá ao dente, põe-te a milhas

Firmemente aperta as quilhas

Dor, sofrimento e lamento

Fazem de ti um jumento


Dá ao dente alimenta o que te enriquece a mente

historietas de novela põe-te a tola demente

Se a bitola é falsidade pr’amansar o ego carente,

põe na cartola tua verdade pois tudo falas, nada sentes 

Mas se o amor faz parte da tua passada

vais trinar e vais voar com o resto da passarada 

Não há pedaço de céu que escape à tua mirada

olhos sem ramelas vêm tudo onde não há nada


Põe-te a milhas dessa raiva que por dentro te consome

abandona-a num baldio e deixa-a morrer de fome

de frio, de sede e doença grave rara e sem nome

que as entranhas putrefactas, vis e fedorentas come   

Reanima o morto com um tiro de perdão,

mostra ao vivo como bate no esterno o coração,

que a interna luta é um caminho p’rá resolução

mas que nem todas as conclusões vêm da razão.


Firmemente aperta as quilhas p'ra o balanço não falhar

finca os olhos nessas ilhas onde o teu ser vai medrar

com o sol e com a chuva, com o vento e com o mar

e quando a pele estiver curtida há conquilhas para o jantar

É conta certa que o previsto não vai ser

e que a expectativa alta inverte o acontecer

No salgado da viagem inventa o doce prazer

se te encontrares com o abismo diz que é cedo pra morrer


Dor, sofrimento e lamento são três faces da moeda

um retrai, o outro rasga e o último embebeda

O primeiro não se evita, o segundo a boca azeda

e o terceiro pra piorar a situação é tiro e queda

Mas tudo muda quando a mona se organiza

e a testa em vez de fender enrugada fica lisa

Na inspiração profunda a labareda vira cinza

e não há questão que não sucumba à mais leve brisa


Fazem de ti um jumento sempre que desesperas

e tropeças nas vivências mais cruéis e mais severas

A tortura, a prisão, os vírus ou bactérias

ou o que te faça acreditar que são falsas tuas quimeras

Não quero cair na falácia e mentir afirmando:

“para ser feliz basta decidir”

Cada um é o caso que o acaso permitir

e se a fome aperta vais-me ouvir ao longe a ganir.


EM CONTINÊNCIA


Farda aprumada, bota de estrada, tola rapada

A pistola não é negada, quem carrega que a dispare

Não! Pare para pensar e questionar a ordem dada


Montamos cercas, portas abertas para atirar

Somamos perdas, contas incertas para pagar

Semeamos guerras, mortes que tardam em sarar


E atrás do escudo quem se esconde?

A massa bruta em pé, a ordem feita fé

O inverso da ralé, a estátua e a sé

Ou eu que não tranquei a minha porta?


Aborta a missão que a proteção é vã

Depois dela vem sempre a violência irmã

Algema quem te ordena matar teu irmão

Ou que cortes as mãos a quem só roubou pão


Difícil é disparar matando a culpa ao mesmo tempo



MI ALIÑO


Cariño, tu eres mi aliño, mi propio sabor

Tres flores y tremendo polen para los amores

No me das mala espina con tu cintura fina

Aunque te miren todos los borrachos

cuando entramos en la cantina


Hermosa, eres brillante diosa, santa pecadora

Pincel, colorido esbozo en mi alma de papel

Trabajado granito, en tu magma derrito

Pero si el cuarzo atrasa tu reloj

me siento viejo megalito


Cuando no te conocía

yo ardía en mil fuegos

Siento olor a tontería

y me quemo con tus juegos


Sublime, te pido ahora, dime a cuantas voces canto

Deserto de cualquier guerra fría y mi calor te oferto

Si te aburro, lamento cargarte el pensamiento

Estaba picando piedra en tu corazón

y se me fue el tiempo



PEQUENA MORTE


Após fechares os olhos

e apagares a última vela

a terra aprontará das dela


Por baixo das flores aos molhos

ao corpo morto de cansaço

as larvas darão seu abraço


Na senda de te tornares húmus

tua vista vai ficar vazia

e em pó os ossos da bacia


Ao beber a árvore teus sumos

serás de uma folha a mãe

que cai no outono que vem


Se voas para longe é certo

flutuarás num desses rios

que nascem lá nos picos frios


E com tanta água por perto

aprenderás logo a nadar

p'ra uma ave te bebericar


Tuas penas cairão do céu

em ondulação oscilante

nas mãos de um jovem amante


Adorno de um belo chapéu

verás como aquece o corpo

quando o amor ainda não está morto


Respeito quem creia num deus

mas meus sonhos são ateus

pois ainda ninguém voltou p'ra contar

ainda ninguém voltou p'ra cantar

ainda ninguém voltou p'ra contar

ainda ...



SEM RESPOSTAS


Pra quê agarrar o vento se a previsão é vendaval

Pra quê viver o tormento e aceitar o que é banal

Pra quê dormir ao relento se a lua cheia já passou

Pra quê dar ao sol sustento se a queimadura não sarou


Como os teus olhos há poucos

Como o nosso amor há muitos

São tantos que ficam loucos

Com tantas conversas, tão poucos assuntos


Pra quê ser a folha seca se a Primavera vem aí

Pra quê ser o ser que peca e não pecar ao pé de ti

Para quê lavrar a terra se erva daninha é bem mais forte

Para quê escalar a serra se no topo há sempre a morte


Musa clara da manhã

Companheira ao meio-dia

Peregrina pela noite dentro

Melodia em que adormecia



SÍNDROME DE VIAJANTE


Há quem beba da água do rio

Quem da bomba carregue o pavio

Há quem suba a grandes alturas

Quem escute do mundo as aberturas


Há quem tenha o deserto ao dispôr

Quem viva num cubículo de amor

Há quem nunca viveu mais além

Há quem todos os dias fica aquém


Ser viajante é por dentro da casa viver

Ter na estante o livro do presente pra ler


Lugares onde não se vêem estrelas

Sítios onde só existem velas

Vilas em que o silêncio afunda

Aldeias em que a música abunda


Ilhas há pra navegar o dia

Montanhas com cheiro a maresia

Ondas só com bilhete de ida

E um grito para voltar à vida




TENTÁCULOS E ESPINHOS


Não sei se vou um dia encontrar

mais belo paraíso do que a areia sob o mar

e sobre ele o céu a lancear

o dia que chegou para brilhar


Não sei se vou um dia encontrar

mais belo paraíso do que a areia sob o mar

e sobre ele o céu a lancear

o dia que chegou para morrer


Com a noite que revolve e se revolta

e se redime espuma na pedra esverdeada

e esconde estrelas que nos mostra a madrugada

se a sorte nos trouxer a maré vaza


Não sei se vou um dia encontrar

mais belo paraíso do que a areia sob o mar

e sobre ele o céu a lancear

o dia que chegou para mostrar


Tentáculos e espinhos e cavalos marinhos

crustáceos, lapas e seres sem nome comum

Se eu tivesse cem vidas como estas arribas

mirava os grãos de areia um a um

Se eu tivesse mil vidas como estas arribas

beijava os grãos de areia um a um




XOTE DA FAMÍLIA


Se do pai macho nasce o filho gay

Que esconde fundo o seu amor fora-da-lei

Da mãe caseira, sem eira nem beira nasce o vagabundo

Que como a poeira vagueia no mundo

O irmão explosivo talha o pensativo

Primo pobre envergonha a rica prima e seu perfume nobre

Tia descobre a avó na batotice

Tio encobre o caso com a Dona Alice

A sogra sobe os degraus da demência

O sogro joga o jogo da paciência


Ciência da família, cedência na quezília

Cedência na família, ciência da quezília


De parte a parte se odeiam as noras

Mas se necessário dão dois beijos sem demoras

E os maridos respectivos com seus gémeos umbigos

Fazem vista grossa e moucos os ouvidos

Surdinamente diz que o neto anda na droga

Diz até quem sabe que trocou a toga pelo ioga

O avô quer repor o rapaz na linha

A avó com pena faz-lhe canja de galinha

O bisavô e a bisavó já não existem

Pendurados na parede com o olhar insistem


E pouco a pouco as gerações se vão mutando

O tempo é rei, ordena o caos e altera o bando

Por cada um que a morte avança outro vai sair da pança

Pra chorar, amar e repartir a herança

Nisso as diferenças são eternas, cortam do futuro as pernas E os parentes viram homens das cavernas

Mas há sempre quem ponha água na fervura

E acalme os ânimos com jogo de cintura

Que a eternidade é muito tempo pra uma guerra

E todos querem paz na hora de descer à terra